Em 1988, dois amigos — o alemão Rob Pilatus e o francês Fabrice Morvan — emprestaram os seus rostos e corpos aos Milli Vannili, um projecto musical engendrado e executado pelo produtor alemão Frank Farian.
Só não esprestaram as vozes.
As vozes que se ouviam em êxitos como “Girl You Know It’s True” e “Blame it on the Rain” não eram as do duo. Pertenciam a Brad Howell e John Davis, dois cantores contratados por Farian à revelia de Rob e Fabrice para cantarem no seu lugar.
Acontece que o sucesso dos Milli Vanilli foi meteórico e avassalador.
Para além da Europa, também as adolescentes americanas se renderam instantaneamente às melodias fáceis, aos corpos musculados e aos passos de dança da dupla.
Mas enquanto nos discos, vídeos e actuações televisivas, a farsa era fácil de manter com recurso ao “lip-syncing”, nos concertos ao vivo a mentira tinha de soar credível.
Para tal, o produtor Frank Farian contratou diversos músicos de estúdio como banda de suporte às vozes pré-gravadas de Rob e Fabrice.
Apesar de um ou outro percalço, que fez com que se comecassem a levantar suspeitas sobre os seus dotes vocais, os rapazes e o produtor Frank Farian lá foram conseguido enganar tudo e todos.
A dupla teve mesmo a ousadia de fazer “playback” vocal na sua actuação na cerimónia de entrega dos Grammys de 1990, onde os Milli Vannili ganharam o prémio de Melhor Artista Revelação.
Sim, leram bem, os Milli Vannili ganharam um Grammy.
Este seria posteriormente retirado quando o escândalo rebentou e foi revelada a verdade sobre o grupo pelo próprio Frank Farian, numa conferência de imprensa, em Novembro de 1990.
O final da história é conhecido: os dois Milli Vanilli caíram em desgraça e pagaram um preço alto pela mentira da qual também fizeram parte. Demasiado alto, no caso de Rob Pilatus.
Quanto ao mentor da farsa, o produtor alemão (que já tinha sido alvo de polémica com os Boney M nos anos 70) continuou a produzir discos e, que se saiba, nunca devolveu os milhões que ganhou com os Milli Vanilli.
Por sua vez, a editora do duo, a Arista Records, que se sabia, também nunca devolveu aos fãs do grupo os milhões que ganhou com o álbum “All or Nothing”. Sendo que, só na América, o disco vendeu 7 milhões de cópias.
Como era expectável, os dois “cantores” acabaram por ser as maiores vítimas deste enorme engodo.
A história dos Milli Vanilli é apenas mais uma na história da música pop onde pessoas sem escrúpulos ultrapassam todas as fronteiras morais e éticas a troco do sucesso e do lucro fácil.
E é aqui que entra a Inteligência Artificial e a mais recente controvérsia com a banda The Velvet Sundown
Ao ritmo que a tecnologia IA tem evoluído, era apenas uma questão de tempo até que um dos muitos Frank Farian que por aí andam gravasse um disco inteiro utilizando a IA e o fizesse passar por genuíno.
É provável que o criador dos The Velvet Sundown esteja apenas a testar-nos. Ou que tudo não passe de uma simples brincadeira.
Mas a pergunta se impõe é a seguinte: se ouvissemos a música dos The Velvet Sundown sem saber que estamos perante uma criação da IA, teríamos dado conta?
E daqui a uns anos, como será?
Conseguiremos distinguir uma música totalmente criada pela IA de uma música criada sem IA?
As ferramentas IA estão cada vez mais poderosas e aperfeiçoadas.
Aquilo que há um ou dois anos soava meio tosco, hoje soa realista e convincente.
Imaginem como soará daqui a um par de anos.
Dentro de pouco tempo, não tenho a menor dúvida, que dificilmente conseguiremos distinguir uma música criada por IA de outra criada sem recurso a IA.
Principalmente se se tratar de uma destas músicas pop “modernaças”, cheias de beats electrónicos, carradas de autotune e toneladas de efeitos digitais que, de certa forma, já soam como se tivessem sido criadas pela IA.
E sabem que mais?
Quando chegarmos a esse ponto, é até bastante provável que gostemos mais de algumas músicas criadas por IA do que da maioria das novas músicas criadas por músicos “reais”.
Não acreditam?
Pois vai acontecer.
“A música gerada por IA pode soar bem, mas nunca tocará a minha alma, pois falta-lhes a vivência, a dor e a beleza imperfeita que só o ser humano entende…blá blá blá”, já ouço alguns de vocês argumentar.
Certo. Mas têm lido as letras dos mais recentes hits pop, a maioria deles escritos por um comité de “songwriters” profissionais?
Regressemos agora à história dos Milli Vanilli.
Quantos músicos, editores ou produtores sem qualquer bússola moral e sedentos de sucesso fácil, como Frank Farian, vocês acham que vão usar à IA para criar uma peça de música que depois farão passar por genuína?
Quantos deles não estão já a fazê-lo?
Vou mais longe: quantos desses oportunistas não estarão já a usar a IA para escrever canções inteiras que farão passar por suas?
E mesmo os músicos mais “sérios”…quantos deles não recorrerão à IA como uma espécie de “desbloqueador criativo”? Para ajudar num refrão que ainda não está no ponto ou para concluir uma letra que está a demorar a sair…
Reparem: basta que o artista X ou Y peça para a IA criar uma música dentro do seu “estilo” musical e posteriormente gravar essa mesma música criada com IA com instrumentos reais.
Depois de gravada de forma “tradicional”, quem vai saber qual foi fonte da “criatividade”?
Caramba, se os Coldplay podem ter uma canção no seu álbum escrita por 15 pessoas, qual o problema de outros músicos recorrerem à IA para ajudar na composição da sua música?
Existem assim tantas diferenças nos dois processos?
Nem todos têm dinheiro para requisitar os serviços de hitmakers como Max Martin ou Linda Perry.
E quem usar a IA, estará a cometer uma fraude ou apenas a usá-la de forma criativa?
Onde começa a batota e termina a criatividade?
O que é legítimo e ilegítimo?
Se for um músico a recorrer a este expediente será aceitável e se for um “não-músico”, já será condenável?
E aquilo que os The Beatles fizeram em “Now and Then”, ao usar a IA para “limpar” a voz de John Lennon e assim recuperar uma canção que parecia perdida, pode considerar-se um uso aceitável da IA?
E se os Queen usarem a voz de Freddy Mercury criada em IA numa nova canção ou num tema antigo que ficou por terminar, também será considerado um procedimento ético?
Quem estabelece os limites?
O que está certo ou errado?
Enfim, muitas questões, poucas respostas.
Chegados aqui, importa vincar um ponto MUITO IMPORTANTE: quando falamos de músicas criadas por IA convém lembrar que estas não se fazem sozinhas, é um processo que requer intervenção humana (pelo menos até ao dia em que as máquinas mandem nisto tudo).
Os sintetizadores tão foram alvo do mesmo tipo de desconfiança quando entraram em força na pop em finais de 70, inícios dos 80.
As novas tecnologias geram sempre desconfianças.
Os Kraftwerk que o digam.
São preciso mãos humanas para criar prompts e programar a música que queremos que a IA produza.
Esse talento não faz de qualquer um de nós um músico, mas não deixa de ser um talento como qualquer outro.
Gostemos ou não, o uso da IA na música veio para ficar.
Em breve, terá (não tem já?) o seu espaço nos serviços de streaming (ou em outra plataforma criada para esse efeito) ao lado da música criada sem recurso a IA.
É inevitável.
Existirão resistências no início.
Novas leis e regras serão estabelecidas para proteger os músicos e a música “genuína”.
Notem que os serviços de streaming como o Spotify também são detidos pelas editoras e estas não costumam apreciar a concorrência daquilo que não controlam.
Em última instância, será o consumidor a fazer a sua escolha.
No entanto, bastará uma música criada por IA viralizar nas redes sociais, por exemplo, para que os serviços de streaming se sintam “obrigados” a tê-la nas suas plataformas.
A grande incógnita reside na forma com estas irão distinguir a música real da música criada por IA.
Para já, nada disso acontece. Veja-se o caso dos tais The Velvet Sundown.
Para terminar, a pergunta mais pertinente de todas: onde ficam os músicos/artistas no meio desta imparável revolução tecnológica?
Quem os protegerá e defenderá os seus interesses?
Para os novos músicos, já é tão difícil construir uma carreira e viver da sua arte e talento, como será quando tiverem também de competir com a IA?
Uma coisa é certa, a IA até pode evoluir ao ponto de produzir obras admiráveis como um “Sgt. Pepper’s…” ou um “Pet Sounds”, mas nunca substituirá a música ao vivo.
Para além de que, SOZINHA, a IA dificilmente criará algo de novo ou original, uma vez que ela alimenta-se do que foi feito, daquilo que os humanos criaram no passado (nesse aspecto, as máquinas são um pouco como os humanos, pois todos os músicos têm influências e “imitam” alguém).
Esses são dois pontos a favor dos músicos: a música ao vivo e o poder da criatividade humana.
Tenho a certeza que os músicos que amam a música aprenderão a usar a IA a seu favor e a fazer dela mais uma ferramenta criativa. As possibilidades são ilimitadas.
Não se antevêm tempos fáceis para os músicos e para a arte, mas acredito que o talento e criatividade humana prevalecerá e será para sempre valorizada.
Paulo Garcia
P.S.: Caso pretendam conhecer em maior detalhe a história fascinante e simultaneamente trágica dos Milli Vannili, sugiro o documentário sobre o duo que se encontra na plataforma SkyShowtime.
P.S.: Como tenho por hábito publicar aquilo que escrevo à primeira, não estranhem se encontrarem algum lapso ou erro de sintaxe. Corrigirei aqueles que detectar.
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